Histórias de botequim
Leitor, se eu estou a escrever e você a ler é porque gostamos de histórias, estórias ou as duas juntas se é que podemos separá-las. Há uma linha muito tênue entre viver e contar histórias, sinceramente eu não sei se vivemos para contar, como dizem por aí. O fato é que é difícil de escapar dessa aventura humana, pois sempre há quem queira escutar e quem deseja contar. E é exatamente dessa necessidade que nasceu estes escritos... Hoje eu havia prometido que não sairia para nenhum lugar depois do expediente de trabalho, penso em realizar uma vida nova, outra alimentação, parar com a cerveja e os petiscos nos bares. Não há quem me convença em quebrar meu novo costume, já são três dias com os novos hábitos. Fico a mirar o meu Amigo Bernardo, sei que hoje, por ser quarta feira, ele irá fazer um convite para bebermos ao sair do trabalho, mas já mentalizo várias boas desculpas. O seu olhar silencioso durante o dia todo encontrava meus olhos no corredor, no café, na repartição... Seus olhos e seu sorriso contido no rosto pareciam me avisar ou me lembrar que hoje é quarta e o bar nos espera, mas já cheguei a conclusão que nem gosto tanto assim de cerveja, só a consumo quando saio com amigos, portanto, hoje não titubearei em negar o convite que certamente virá.
A hora da saída havia chegado, momento de extrema liberdade para qualquer trabalhador e como eu já havia alertado ao leitor, veio-me o Bernardo - Cara, preciso lhe contar umas histórias, vamos parar no bar do Totó? É caminho de casa mesmo! Eu me preparei o dia todo para resistir à cerveja e aos petiscos do bar do Totó, mas eu hesitei quando ouvi " preciso lhe contar umas histórias" e depois não tive como negar o convite. O fato é que eu não havia pensado que existia algo além do meu desejo pela cerveja, pois ninguém deseja um objeto isolado, deseja-se também uma paisagem envolta nesse objeto e certamente essa paisagem requer boas histórias.
Ao passo que Bernardo ia servindo os copos de todos, simultaneamente, abria o placar da conversa e o assunto era sobre futebol, a conversa seria complicada para mim já que sou o único corintiano em meio a três são paulinos. Entretanto, Bernardo foi cordial no começo, pois resgatou a homérica vitória corintiana em 1977 sobre a Ponte Preta garantindo o título paulista, ainda mais, exaltou o acontecido! Pois vivenciara a aventura alvinegra e a comemoração do povo na rua, a qual ele afirmava parecer a Revolução Cubana. Quando alguém tentou comentar algo sobre tal Revolução, Bernardo estendia o braço impedindo o amigo de falar, como se estivesse se desvencilhando da marcação, falaram juntos por duas vezes até que a terceira Bernardo falou sozinho e pode concluir a história, Meu pai que também era são paulino me levou para rua, eu deveria ter uns 7 anos e então ele me disse, isso é a Revolução Cubana, quando o povo tomar o poder no Brasil será assim! Outro companheiro iria concordar com Bernardo, aproveitando a deixa marcada pelo ponto final da história, mas levou um drible do colega a sua direita, pois a entonação de voz desse era muito mais forte, sobressaindo a voz fraca que titubeava contar algo à mesa.
A conversa continuava feito um jogo de futebol e era incrível que cada lance, ou melhor cada história havia um viés político e cada ideia para ser colocada na roda necessitava de um traquejo aqui outro ali, um ameaçava levantar da cadeira para ganhar a vez de falar, mas era marcado por uma voz já embriagada gritando seu nome várias vezes até o sujeito ceder a vez de falar. Como eu sabia que discutir contra uma mesa composta de torcedores de um time adversário seria um problema, contei uma história sobre um jogo que eu mesmo fiz e a conversa acendeu mais ainda a vontade dos outros companheiros de contar suas aventuras entre as quatro linhas, uma mais inusitada que a outra, parecia que apenas o Tico, rapaz de voz fraca e trêmula, não tinha nenhuma e a cada estória contada na mesa o Tico resmungava, não acreditava em nenhuma delas, pedia uma jurubeba depois de cada relato e ficava a resmungar baixinho.
Já estava ficando tarde, as conversas estavam se desgastando, foi quando Bernardo anuncia que iria contar uma história que não poderia sair dali, era uma espécie de confidência, era sobre um jogo de futebol de salão na universidade e que quase deu em morte, Escapei por um triz! Repetiu essa frase umas três vezes para dar ênfase na história. O jogo estava pegado, era uma rivalidade enorme entre esses dois times, final de campeonato, ginásio lotado e o melhor dos caras, metido a craque, tentou me dar um chapéu, virei o corpo antes da bola fazer a parábola sobre mim e lhe apliquei o chapéu que ele queria desferir, uma meia lua no ala, um corte seco entre as "canetas" do pivô, o goleiro saiu num carrinho violento e eu dei uma cavadinha "chapelando" o arqueiro que sem outra opção me derrubou travando as minhas pernas, o ginásio veio a baixo, pênalti! Arrumei a pelota com carinho, era finalzinho do jogo, o qual estava empatado, se eu fizesse o gol estaria próximo de ser campeão, mas vocês não podem acreditar, depois que o árbitro apitou para eu bater o pênalti um corno brabo invadiu a quadra com um revolver na mão querendo me matar por que eu havia saído com a mulher dele na noite passada e foi uma gritaria no ginásio. Eu corri para a arquibancada foi um corre corre danado e o "homem brabo" querendo me matar, depois que pulei o muro da faculdade me lembrei do pênalti e voltei, alguns estavam acalmando o cabra macho, a arquibancada se esvaziando, o árbitro ainda estava na quadra a bola no mesmo lugar, me arrisquei, corri ligeiro e bati para o gol sem goleiro, o árbitro registrou e eu gritei É CAMPEÃO! Depois corri das balas que me perseguiam... Pode parar! Gritou o Tico, sua voz fraca havia pegado força. Eu estava na arquibancada, você não tem vergonha de mentir assim não? Tudo mentira, o jogo foi paralisado por conta de falta de segurança, e havia boatos que o PCC estava invadindo a faculdade (foi a época dos ataques do Primeiro Comando da Capital) e foi um corre corre, não sei se era de medo do PCC ou do jogo desses pernas de pau.
Caro leitor, acho que você não pode imaginar o constrangimento que ficou na mesa, todos levaram o copo à boca num silêncio único durante toda a conversa. Bernardo ficou a mirar o tico enquanto virava uma dose de Velho Barreiro, Olha o que você fez! Estragou a estória... Todo mundo sabe que eu minto e todo mundo gosta e preferem minhas mentiras as suas verdades constrangedoras, garçom vê a conta que minha mulher já chegou em casa e nem vi o tempo passar e o pior de tudo é que vou ter que inventar umas estórias para me retratar a ela.
Não é que mentir seja sempre melhor que contar a verdade, leitor. Apesar que toda mentira é construída por várias verdades, mas é que determinadas mentiras possibilitam a reconstrução do passado, permeia o instante da história do não vivido e o transforma em vida, tudo isso de maneira onírica através da arte, da arte de contar estórias ou histórias e se ninguém o desmentir irá contar essas mentiras centenas de vezes e, passando o tempo, nem mesmo ele saberá se foi bem verdade ou se foi falso os acontecimentos de sua própria vida, pois há uma linha muito tênue entre viver e contar histórias, definitivamente só vivemos para contar...
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