O viajante sobre a corda bamba da liberdade
Filho da
puta! Desligou... Bravejou querendo arremessar o celular pela janela do carro,
ela queria matá-lo... Não, queria esfolar a sua pele inteira em um chão de
cacos de vidro, mas o que fez foi ligar novamente para ele, apertou o botão
para religar e engoliu o choro que ficou preso na garganta, Hey, por que você
não quer falar mais comigo e me destrata assim? Rastejou essas palavras a um
ser medíocre transformando-o agora em um ser altivo. Ela sabia que não deveria
insistir em se rastejar, mas não se controla a dor da angústia, do que se há
entre o tempo mórbido e o fim de tudo. Ele demorou um pouco a responder, Vamos
seguir nossos caminhos separadamente. Tentou ser firme, Ao menos por agora. Não
conseguiu. Era isso que a perturbava, nunca havia um ponto final, acabou!!! Ele
sempre deixava um sei lá, não sei não, ao menos por agora... Ela desligou o
celular, apertou mais o nó na garganta que se estendia ao peito, deu partida no
carro e gritou, Idiota! É o que sou...
O mundo fora do carro parecia
distorcido e ganhava uma nebulosidade pelas lágrimas que se equilibravam para
não cair, ele não valia uma gota, mordia os dentes para não chorar, havia uma
dor maior do que essa que sentia? Pensava em meio a soluços e suspiros sem
deixar cair uma gota. E durante um longo suspiro um vulto atravessa em sua
frente, (PARE). Parece brincadeira do destino, mas esse vulto era de um homem
que olhava para o seu celular ao atravessar a rua e cruzou o caminho do veículo
desatento e conturbado. Mas esse homem também andava amotinado, além de
desatento, pois acabara de ler a seguinte frase antes de ser atropelado, Eu sei
que lhe magoei, mas também sabemos que eu gosto muito de ti. E antes haviam
várias frases que desconcertavam toda a sua vida, frases colecionadas durante
um ano, daria para preencher um livro, mas não a sua existência.
Ele não a entendia, ou não queria
entender que ela queria se divertir sendo livre, ele achava que pensava na
mesma liberdade que descobriram juntos na faculdade de Filosofia, mas há uma
linha muito tênue entre o desapego e o desinteresse. Não sumi da festa, aliás
não sei o que me aconteceu depois que tomei 1/4 de bala, mas não se preocupe,
estou bem, dormi na casa de uma amiga que conheci na festa, você também precisa
conhecê-la. Tentou não responder a essa mensagem, mas não conseguiu, queria
xingá-la por ter o deixado esperando a festa toda com dois copos de cerveja que
ele havia comprado para eles, andou a festa toda feito um idiota com dois copos
de cerveja já quente, Fiquei preocupado. Ele não quis parecer controlador
machista, mas queria se desprender dela, não queria sair assim como alguém
desinteressante que cai no esquecimento, pois gostava de quando falavam das
mesmas coisas, das críticas que faziam à moralidade da sociedade, de quando de repente
se percebiam olhando para a mesma coisa durante minutos em silêncio e depois
riam, gostava de olhar o mundo assim junto a ela. E ele sabia que para manter
tudo isso carecia os dois se equilibrarem na corda da liberdade. Entretanto,ficar parecia ir longe demais, o
preço era muito alto, custava várias noites desveladas, dias de espera
para passar ao lado de alguém que talvez nem apareceria, frustração e dissabor
em cima da corda bamba da liberdade que por ironia acabava por sufocar os dois.
Ele andava pela rua num extremo
desassossego, trazia em seu caminhar uma dor elegante e que sem ele perceber
era cobiçada pelas mulheres que reparavam no charme que só a dor pode esculpir
em um homem, Ela sabe que me magoa e ainda se desculpa, cara de pau! Ele queria
dar um basta naquela história que parecia não ter começo e nem fim, por isso
mesmo não conseguia e se perdia no meio do caminho. Relia a mensagem e não lhe
vinha a palavra certa, talvez ainda não inventaram uma palavra que colocaria
fim e ao mesmo tempo trouxesse a satisfação e a sensação de que tudo já estaria
dito, não haveria mais nada a dizer, mas a palavra não nascia e a dor latejava
mais a cada passo na rua, Não há dor maior... Merda! Suspirou tentando soltar o
ar o mais de vagar possível para não deixar dúvida que o seu sofrimento era o
brutal.
(Pare)! Ela não parou, um barulho
seco, um grito do outro lado da rua, Meu Deus! Ela parecia não entender nada,
parecia estar em outro mundo, quando desceu do carro viu um homem deitado no
chão, as lágrimas, que eram por outro alguém, se desequilibraram e caíram em
meio ao desespero, o cara fez uma expressão de dor e tentou se levantar, mas
foi impedido por um senhor que passava pela rua e tentou ajudar. Ela somente
olhava para aquele sujeito desconhecido que de repente apareceu ali deitado
parecendo sentir a dor que ela estava sentindo. Ele queria gritar, mas só
resmungou, Merda, essa dor sim é muito pior. Enquanto o socorro não vinha ele
ficava ali no asfalto quente em meio aos cacos de vidro da lanterna. A moça se
desculpava, pediu para não se mexer e com as mãos trêmulas tentava acalmá-lo
tocando sua pele, Quer que eu ligue para alguém? Ela não sabia o que dizer
nessas horas, se é que sabemos sempre o que dizer...Não precisa ligar. Ele
queria que ligasse para aquela que sempre lhe magoava, mas não pediu, Não tenho
ninguém aqui na cidade. Ela ficou curiosa pelo mistério, ninguém? Quando o
socorro chegou ela mesma o acompanhou, Vou cuidar de tudo fique calmo.
Seus olhos em sobressalto
paralisaram quando o médico lhe contou o que havia ocorrido, fratura na perna
esquerda e na costela, O moço é forte não precisa se preocupar, mas ela se
preocupou em entrar no quarto e se desculpar inúmeras vezes por não ter visto a
placa sinalizando PARE! Não precisa se desculpar, isso acontece. Devo lhe dizer
que também tenho parcela na culpa, pois estava desatento olhando para o
celular. Depois de dizer isso para acalmar a moça, apertou o botão do celular
para enviar a mensagem, a qual o fez titubear durante longos minutos, Fui
atropelado quebrei a perna e alguns ossos da costela, estou no Hospital, onde
você está? Talvez, essa pergunta sobre o paradeiro dela fosse mais urgente que
qualquer outra coisa, fazia alguns dias que ela não dava sinal de vida. O sinal
da mensagem chegou no momento em que ela transava com o namorado daquela amiga
que conhecera na festa, o casal tinha um relacionamento aberto e ela
deleitou-se de ambos os corpos que se entrelaçavam "livremente".
Olhou a mensagem ainda ocupada com o outro corpo e pensou em responder depois,
mas se esqueceu.
O médico disse que amanhã pela manhã
você já irá ganhar alta, como você falou que não tem ninguém aqui na cidade eu
virei para lhe buscar. Disse isso fitando sua barba que deixava aquele rosto
mais triste, porém esculpia aquela elegância que acabava por atrair os olhos
das mulheres, ela passou a falar com ele com mais ternura e com um desejo de
cuidar daquele homem triste. Eu aceito a sua carona se você me prometer não atropelar
mais ninguém por aí. Risos contidos e contemplativos.
A manhã deu em chuvosa, da janela do
hospital ele sentia as gotas de chuva que caiam com vontade enquanto ele se
esforçava para não derramar uma gota pela garota que se esqueceu de responder à
mensagem, É isso que dá se preocupar demasiadamente com outra pessoa, fazer o
bem nem sempre é bom. Ele sempre fez tudo que podia para essa mulher se sentir
bem e acreditava que não esperava nada em troca, mas sempre esperamos um
pouquinho, o suficiente para nos decepcionar, sua filosofia de fazer algo sem
esperar nada em troca caíra por terra, o que lhe restava agora era esperar a
moça que lhe atropelou para lhe tirar dali. Bom dia! Desculpa-me pelo atraso,
essa cidade vira um caos com qualquer chuva, imagina como ficou lá fora com
esse temporal. Ainda bem que o tempo já está limpo, foi só uma chuva de verão.
Ele podia imaginar, deveria estar como o caos que habitava dentro dele, mas só
concordou com a cabeça sem dizer nada a respeito da chuva, Você vai ser a minha
perna agora e andar comigo daqui? Pois, já estou entediado com esse lugar.
A manhã trazia um frescor do ar
úmido depois da chuva, ele sentiu isso depois do esforço que fez para sair do
carro e respirou bem devagar por causa da fratura da costela, assim sentiu o
cheiro da manhã purificar seus pulmões, isso lhe fazia se sentir
melhor, ainda mais perto daqueles olhos azuis bem calmos que lhe ajudavam
tanto agora. Não vai me dizer que você mora no último andar? O prédio era
humilde e alto e sim ele morava no último andar e o pior, não havia elevador.
Pois é, você parece ser boa em adivinhar as coisas, eu vou ter que me esforçar.
Enquanto presenciava o esforço que aquele homem fazia para subir ao seu
apartamento ela pensava em levá-lo para casa, assim podia cuidar melhor dele e
ele não sofreria tanto, afinal foi ela quem o colocou nessa situação, mas essa
bondade nascia, na verdade, do desejo que estava ficando mais forte de tê-lo
por perto e de sentir o seu corpo... Mas não sabia como dizer isso sem parecer
oferecida demais.
Quando entrou no apartamento sentiu
um cheiro estranho, avistou uma bagunça... Um caos, restos de cigarros no
cinzeiro e no sofá, roupas espalhadas, livros esquecidos no chão e
desorganizados na estante, os olhos azuis se espantaram ainda mais quando
passou a reparar em alguns anéis e brincos deixados na mesa central da sala e
mais ainda quando foi ao banheiro e se deparou com uma calcinha pendurada no
registro do chuveiro, Você disse que não tinha ninguém aqui na cidade. Ele
percebeu o olhar desapontado dela, É como se não tivesse. Ela percebeu um ciúme
já de cara pelo "desconhecido" homem, e esse sentimento já a empurrou
sem medo para a sua proposta, Estou pensando em como vai ser pra você arrumar
isso tudo aqui e ainda subir e descer toda essa escada, acho que arruinei a sua
vida, por isso seria justo você ficar em casa até se recuperar, eu moro sozinha
e não me atrapalharia em nada, até ficaria com a consciência mais tranquila em
poder lhe ajudar. Ele fitou os olhos dela por um instante, Não posso lhe dar
todo esse trabalho. Ela se pôs a pensar em um argumento irrefutável, Se você
não aceitar fará um grande mal a mim, pois não terei uma noite se quer de sono,
será culpado pela minha insônia. Ele voltou a fitá-la, o argumento não era
convincente, mas quem disse que convencemos através de argumentos bem
elaborados? Depois de sentir aquele jeitinho dela meio que atrapalhada e
gaguejando um pouco na tentativa de convencê-lo, Mas, só se não for atrapalhar
em nada mesmo, você me deixa num canto esquecido. Ela sentiu ir embora o frio
na barriga e acreditou ter usado as palavras certas para convencê-lo.
Quando iria responder à mensagem
ficou com medo e sentiu culpa, o que iria dizer? Que não respondeu por que
estava dando para um cara que acabou de conhecer? Pensava em neutralizar as
coisas, mas o que iria escrever? Ele não era idiota, precisava escrever algo
convincente e ajustar o alarme no celular, mas dormiu pensando na desculpa.
Pela manhã acordou atrasada, não havia programado o alarme, por isso não deu
tempo de tomar banho e nem de fazer o café, só colocou a roupa do trabalho e
ainda sem responder à mensagem partiu para a loucura do dia a dia. Enquanto ela
engolia a comida do almoço pensava em responder aquele homem, mas o que
neutralizaria a magoa de alguém esquecido e abandonado em um hospital pela
pessoa que ele tinha tanto apreço? O tempo do almoço estava acabando e ela
estava se sentindo pior a cada segundo. Antes de sair do trabalho resolveu que
não havia o que escrever, o que ela precisava era ir até a casa dele para
vê-lo, pois era o que desejava naquele instante, parecia até que o amava mais
do que imaginava e por isso mesmo iria inventar que havia esquecido o celular
na casa da recente amiga e só tinha visto a mensagem agora, já que ela queria
neutralizar as coisas, não queria vê-lo pior do que ela imaginava que ele
estivesse.
Desligou a moto e olhando para a
janela do último andar tentava disfarçar o medo que enraizava em seu semblante,
ela subia rápido as escadas enquanto procurava a chave que sempre ficava
perdida em sua bolsa e ao mesmo tempo pensou que poderia ter comprado alguma
coisa pra ele, um livro ou algum doce da padaria que ele gostava, mas agora era
tarde, estaria no lucro se achasse a chave para lhe fazer uma surpresa, iria
abrir a porta e entrar sorrateiramente e abraçá-lo por trás, caso ele estivesse
de costas para a porta e de fronte à janela em sua poltrona lendo um livro como
habitualmente ficava. Desenroscou a chave que se emaranhava com o fio do fone
de ouvido, o braço pesado pela culpa ou pela angústia que trazia agora fez
girar a chave e todo o esforço para não ser percebida fora em vão, Hey! Você
está aí? procurou no apartamento todo, ele não estava. Ela começou a ficar mais
preocupada, Será que foi mais grave do que eu pensei e ele ainda está no
Hospital? Que Hospital, meu Deus? Ligou para ele, mas ele não atendia, deixou
recado, mandou mensagem explicando que estava preocupada que só viu a sua
mensagem agora, explicou que perdera o celular, explicou que o amava, explicou
que sempre teve vontade de estar sempre com ele e que agora a vontade era
maior, mas nenhum sinal de resposta... Ela dormiu na poltrona sentindo a dor da
culpa e do descuido que teve por alguém que sempre se preocupou com ela, por
isso se sentia a pior pessoa do mundo. Fazer o bem a outrem talvez seja o ato
mais perverso e cruel, pois é o que passa a prender o indivíduo que queria ser
livre, é criar uma dívida, a qual é impossível pagar, ela não sabia disso e chorava
antes de dormir com o rosto todo molhado.
A primeira noite na casa da
desconhecida que o atropelou parecia ser um presente, Por que não me atropelou
antes? Ele pensava se controlando para não dizer isso. As roupas de cama muito
brancas e limpas, cheirava à amaciante e o perfume que pairava no quarto demonstrava o carinho que essa
mulher era capaz de oferecer à vida. Dava para ouvir, entre pingos de chuva, a
chegada da moça, ela tentava se proteger da água fria com a sombrinha e bem
rente à porta gira a chave com o braço muito leve, talvez pela felicidade que
trazia para compartilhar com alguém que lhe esperava no "quentinho"
do aconchego que preparara com todo carinho. Esqueceu a sombrinha em um canto,
agora com as duas mãos livres separava o que trazia da rua, doces da
padaria, um livro de um autor que ela tentou adivinhar ser do gosto dele, Rubem
Fonseca e alguns filmes que iria pedir para ele escolher um para assistirem
juntos. Ela sentia uma sensação de segurança ao adentrar sua morada que lhe aquecia
e lhe protegia das gotas frias que caiam lá fora e, mais ainda, a segurança se
tornava maior quando havia alguém lhe
esperando enrolado no cobertor, o calor dele se confundia com o aconchego da
casa que lhe protegia do mundo frio e ríspido lá fora.
Você é uma espécie de feiticeira,
como adivinhou a minha padaria preferida...? Ela engasgou com a felicidade
parada na garganta por ter acertado e ao explicar gaguejou um pouco antes de se
atrapalhar com as palavras e isso fazia com que ele gostasse ainda mais do
jeitinho dela. O livro era certeiro ainda mais quando ele parou um instante ao
ler o comecinho na contracapa, "o mundo é doloroso, os seres humanos não
merecem existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação está
de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a velha, não a
crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato e não apenas da minha
imaginação foi a impulsão que fará de mim um verdadeiro escritor. Tenho, agora,
o começo, tenho o meio e o fim." (Pequenas criaturas -
"Começo"). O filme de Almodóvar, "Carne trêmula" foi o que
ele escolheu, já havia assistido inúmeras vezes, mas o achou sugestivo para o
momento. Enquanto assistiam ao filme comendo as guloseimas da padaria em baixo
do cobertor que impedia o calor dos dois de se dissipar no ar que a chuva havia
esfriado naquele verão, ela começou a fazer carinho na barba e ele achou bem
bom e passou a segurar a outra mão que ela não sabia muito bem onde deixar,
assim passaram a assistir ao filme, criando um momento capaz de proteger de
todo o resto do mundo , inclusive da mágoa que ficara da porta pra fora, eles
não se lembravam mais daquela dor que afligia o corpo e o ego de ambos.
O cheiro do quarto, a organização de
cada coisinha trazia uma espécie de ordem e de sossego onde antes se encontrava
o caos que era os seus sentimentos, talvez era isso que precisava naquele
momento. Bebês não dormem tão bem quanto ele, entretanto, esse instante em que
ele parecia ter lançado a âncora, assegurando a estabilidade, poderia ser
destruído apenas por uma mensagem enviada pela única pessoa que poderia lhe
magoar, Hey! Responda-me. Deixe de infantilidade, cara. Estou preocupada e com
vontade de você. Ele iria responder, mas antes sentiu a leveza do seu ser, não
estava mais preso a uma pessoa, por isso sentia que o "seu mundo" era
maior. Queria até agradecê-la pelo descuido que teve com ele, por todas
desatenções, pelos sonhos desvelados, mas somente explicou a sua situação e
pediu para ela não se preocupar já que estava sendo muito bem cuidado. Ele
sabia que iria ferir a moça e se sentia bem por isso e sabia que ela iria
chorar, chorou. Tá certo, eu mereci mesmo, não foi correto o que fiz com ele,
sempre o deixando em segunda opção. Chorou mais ainda, queria dizer que ele estava
com a razão e que seria melhor mesmo ele ficar com "essa" outra que
lhe dava o que ele merecia, o que ela não conseguia, mas apertou o nó na
garganta e o botão para enviar, Sei que errei contigo, não entendia ao certo o
que era liberdade de fato, não quero que você pense que não lhe desejo, mas não
consigo dizer de maneira convincente e parece que todo o meu esforço é em vão.
De certo que era em vão, as pernas
já estavam quase recuperadas assim como a sua costela, mas o melhor era que a
ferida das garras da felina estava cicatrizada. Já não precisava ter tanto
cuidado quando seu corpo se entrelaçava ao da moça que só lhe fazia o bem e o
pensamento já não tinha resquícios do passado amargurado, aquela que era o mais
importante da sua vida agora tanto fez que tanto faz. Ele já poderia voltar a
sua casa, mas acabou contraindo uma gripe muito forte, Você vai ter que ficar
mais um pouquinho, santa gripe! Ela ficou alegre com a doença dele, queria
cuidar mais um pouco daquele homem e ele ficou. Quando estava perto do
anoitecer e dela chegar do trabalho ele começou a sentir uma forte febre,
parecia que nunca havia sentido algo assim, queimava todo o seu corpo, Já estou
no inferno? Tentava se remediar com o humor, mas não adiantava, pois as dores
no corpo eram insuportáveis, a alucinação se apertava parecendo adentrar pelos
olhos... Ela chegando de moto dizendo ser a sua febre, ser o vírus incubado e
que agora eclodia, sempre fingi orgasmo quando transamos, fui frígida tanto
sexualmente como afetivamente durante esse um ano que ficamos juntos, nunca
senti vontade de sair com você que me prendia com a sua bondade. Agora eclodi,
não quero estar mais presa e incubada nos seus atos bondosos que me escravizava
a você. De repente sentiu algo suave em seu rosto, a outra havia
chegado e colocado um pano úmido na sua testa, isso foi relaxando, uma sensação
de alívio enorme aparecia junto àquela mão delicada, Está tudo bem agora
querido! Ela foi se afastando, ele pensou em pedir um copo de água, mas não
pediu, não queria incomodá-la ou estava com medo de se tornar um escravo,
Trouxe para você, acho que vai ficar melhor com um pouco de água. Ele não podia
recusar estava seco por dentro, mas ficou a pensar, como ela sempre adivinhava
suas vontades? Estaria pensando em me prender e me escravizar?
Ainda deitado, velava o sono dela
naquela manhã de domingo, enquanto ela dormia tranquilamente ele pensava sobre
tudo o que havia acontecido entre os dois, ela era uma pessoa boa, isso o
assustava, tinha uma pele alva e macia, ele cheirava o seu pescoço como quem
conferia se aquele cheiro tão bom fosse de sua essência e, portanto ainda
estaria ali, estava. Ele queria tocar a sua pele, mas apenas a admirava em
silêncio... De repente os olhos azuis se abriram, pareciam se acender e logo
veio o sorriso, ela parecia cada dia mais feliz e depois de o beijar foi fazer
o café. Ele queria ir à padaria comprar algo diferente, mas se atrasou um
pouco... Ficara a refletir sobre os seus olhos azuis, eles não eram atraentes
como os selvagens olhos verdes e nem misteriosos como os olhos negros e muito
menos doces e afáveis como os olhos cor de mel, os olhos azuis lhe remetiam aos
das bonecas de suas irmãs durante a infância, olhos artificiais e
estereotipados. Ficou com medo de concluir que não sentia o que imaginava
sentir de fato por ela. Sentiu culpa, não apenas por não ter ido à padaria, mas
por estar se afastando dela. Ele não sabia, mas o ato de querer se aproximar
cada vez mais dela era o principal fator do afastamento, já que essa
aproximação também partia da dívida que criara a ela.
O hospital pálido, como a maioria, o
fazia sentir algo de ruim. Aquela mancha de ferrugem em forma de fios que se
escorria pela parede central parecia um sangue anêmico, mas era preciso adentrar
essa instituição que detinha a verdade de toda a cura possível, mesmo que essa
ideia não lhe era agradável, teve que entregar a carta de retorno para
retirar os pinos metálicos que carregava a sua perna. Depois de passar por toda
a burocracia ele agora esperava no corredor a anunciação do seu nome,
enquanto aguardava se perdia na reflexão sobre aquelas pessoas bem velhas
ao seu lado postadas nas cadeiras de roda com a boca aberta cheia de cansaço,
Porque passar por isso, tanto sofrimento? Pensou em voz alta. Por que não
deixar chegar a morte com dignidade? A vida já é um grande sofrimento,
envelhecemos, padecemos de doenças e morremos e não há outro jeito senão
aceitar nosso destino. Enquanto matava o tempo com essas reflexões havia
sentado ao seu lado uma garota que segurava o braço esquerdo com alguns pontos
no pulso, o corte havia danificado sua tatuagem de saturno. Isso que é matar o
tempo de verdade! Pensou em dizer, já que saturno na mitologia romana é o deus
do tempo, mas quando abriu a boca, Da próxima vez que tentar um suicídio não
corte na posição horizontal, mas na vertical pegando o braço todo, assim se
você se arrepender não tem como estancar o sangue, sucesso, vai sentir cair a
pressão e estará tudo resolvido, agora na horizontal é só dobrar o punho para
cima e estancamos o sangue e a nossa coragem. Ela escutou com uma cara de
desdém, mas ao fim da explicação, ainda com os olhos mórbidos, Inteligente!
Poderia me dar uma aula sobre isso, não pode fumar aqui dentro, né? Ela parecia
ter um desespero em seu sorriso que colocava um ponto final na conversa.
Depois de ouvir o seu nome
resmungado pelo médico ele adentrou a salinha com o medo de voltar e ela não
estar mais ali e, quando voltou ela realmente não estava, olhou com desespero
para os lados, pensou em perguntar para alguns daqueles velhos que esperavam a
morte anunciar os seus nomes, mas foi caminhando com a dor do desencontro, os
passos trágicos titubeavam até ele parar na porta e suspirar, Hey! Passa o seu
telefone para marcarmos aquela aula! Ele se surpreendeu, ela o esperava, queria
vê-lo e queria o número do seu celular... Aqui o meu cel, me passa o seu! Ela
sorriu dobrando o papel com os dígitos que poderiam conectá-los,
pegou a caneta e a folha que as mãos ansiosas lhe ofereciam, mas só
esboçou o seu nome, Marcela. Entregou o papel dobrado ao meio, Não dou meu
número para estranhos. Deu-lhe um beijo no canto da boca, virou as costas e
saiu em direção ao ponto de ônibus. O que lhe restava era esperar ela ligar,
mas os dias foram se passando e a ligação esperada não chegava, ele começou a
ficar preocupado, Será que ela havia perdido o número? Será que havia se
arrependido, ou só estava tirando uma com a minha cara? Ou será que havia
seguido o meu conselho e ter feito o corte na vertical? Ele pensava alto
enquanto fazia suas necessidades fisiológicas, ou enquanto deixava cair a água
do chuveiro em seu corpo, era ali no banheiro que nascia as suas melhores
filosofias, poemas e canções, as quais eram esquecidas ao fechar o registro.
Ele começou a ficar meio doente, parecia que o celular estava tocando, mas ao
bater a mão no bolso conferia que o aparelho não estava ali, quando andava nas
ruas parecia que todas as mulheres possuíam seu rosto ele queria conferir em
todos os corpos se ela estava em algum deles, não estava. Ele poderia estar
esquecendo de alguns detalhes daquele corpo, mas os seus olhos negros, mórbidos
e lancinantes ficaram tatuados em sua retina.
Enquanto fazia o café ficava
conferindo os e-mails e outras mensagens nas redes sociais, por vezes ele era
forçado a responder para as duas mulheres que havia se envolvido nos últimos
tempos, mas quase não respondia àquela que lhe magoara, e se sentia obrigado a
responder as mensagens daquela que lhe cuidou tão bem, mas sua cabeça estava na
moça do pulso remendado, não conseguia esquecê-la. O som de uma mensagem
chegando ao celular fazia ele parar de coar o café, foi conferir, não era a
Marcela, era a mulher que sabia lhe magoar, ele sentiu uma pequena saudade
dela, mas não o suficiente para reabrir a ferida, pois ele acreditava que uma
vez cicatrizada não se abre mais, mas foi ler com entusiasmo, entretanto com o
olhar solene, Oi! queria lhe dizer que não saí do instante do nosso
desencontro, o qual se tornou a fronteira que nos separa e que me prende a um
esforço inútil de aproximação, porém esse marco que nos divide é ainda o ponto
de encontro possível é o que alimenta minha pequena esperança, mas também sei
que essa alimenta a maior entre as maiores dores do mundo... Dói esperar a condensação
do acontecer. Ele queria responder, não queria vê-la assim sofrendo, mas dessa
vez conseguiu ser forte, pois não queria mexer na ferida já cicatrizada, mas
sabia que essa força não era dele, se chamava Marcela, chegava de uma fraqueza
interior, mesmo assim se convenceu que se encontrava forte e apagou a mensagem.
A ideia não nascia, já fazia
cinquenta minutos que ele se encontrava ali frente ao notebook sentado na
poltrona contemplando o céu que dividia o espaço com os prédios, queria
escrever um livro, um ensaio sobre a liberdade, mas agora aqueles pensamentos nascidos
da filosofia de banheiro pareciam frágeis, ele precisava de algo a mais
para se inspirar, tentou ler alguns filósofos, sociólogos e até psicanalistas e
todos renomados, mas não lhe ajudava muito. O que parecia lhe inspirar naquele
momento era a Marcela, ela parecia uma viajante, enquanto ele ficara ali a sua
espera ela passou como parte um viajante sem olhar para trás, talvez ela só
queria provocá-lo com um beijo. Ela passou e ele ficara como a paisagem espiada
através da janela, ele queria aprender a sentir prazer nas mudanças, a passar e
não se apegar a nada, somente esperar o próximo lugar... A próxima manhã. Ele
queria escrever sobre isso, mas não conseguia organizar essas ideias, já que a
vida era um emaranhado de complexidade, um fluxo de contradições de desenganos
e de desejos que se confundiam com sonhos desvelados.
Antes de se empenhar a escrever
precisava responder aos pedidos desesperados que rastejavam por um encontro, Na
verdade foi você quem me atropelou, só o que faço é pensar em ti e sofrer de
saudades. Preciso falar contigo na quinta. Podemos? Ele era um devedor, sentia
que precisava pagar a ela a enorme conta, Não podemos nos encontrar, ao menos
por agora, não quero que fique presa a mim. Quando me conheceu a sua vida não
estava bem e você estava triste, mas de maneira equivocada criou uma
perspectiva que iria encontrar o sentido da vida em mim, mas ela não tem sentido,
aceite isso e tente seguir seu caminho como um viajante... Para conhecer outras
paisagens, a vida é maior quando o sentido não está em uma única pessoa, esta
chega a ser insignificante perante às possibilidades que a vida pode oferecer,
caso não sinta que viver é bem maior do
que tudo que criamos e sentimos juntos... Finja que é. Uma vez que a existência
não tem sentido e se parece com um vazio, podemos pensar que é possível nos
reinventar e a isso podemos dar o nome de liberdade. Desprenda da saudade,
deixa-a para daqui alguns anos e se permita perder no caos, pois a sua vida é
muito organizada e sinto que isso é um fardo para ti, parece que tenta se
iludir que a vida é precisa, mas ela não é. Parece-me que por vezes
necessitamos de deixar nos perder no caos, na desorganização que é todo esse
emaranhado que chamamos de vida, ora a necessidade se faz pelo tempo calmo
presente em momentos estáveis e organizadores do caos... Tornando a vida
um eterno vai e vem. Sinto que o seu momento é de se permitir se perder. Ele
sentiu que o seu ensaio poderia partir dessa resposta, começou a escrever e
pela primeira vez começara pelo título, antes de continuar a digitar foi
desligando todas as redes sociais e quando pegou o celular para desativá-lo, o
número dela apareceu na tela emitindo um som que parecia ser maior que o de
costume, a tela do aparelho se acendeu feito os seus olhos
azuis quando se abria pela manhã . Ele Pensou em não atender o telefone para não esquecer de escrever o título, "O viajante sobre
a corda bamba da liberdade", Filho da puta! Desligou...
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